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Crítica - "Vão pensar que estamos fugindo", de Valesca de Assis.

Atualizado: 4 de mar. de 2020


Graduado em História e Jornalismo, estudioso das mecânicas factuais que nos trouxeram ao estado atual, estou sempre atento a livros que abordem discursos historiográficos. Quando vem em forma de livro juvenil então, é muito divertido. Ensinar e entreter ao mesmo tempo é algo muito difícil e são poucos os autores que se consagram nessa difícil arte. Valesca de Assis é uma autora gaúcha letrada nas construções ficcionais. Suas obras, em grande parte voltada para o público adulto, discorrem sobre a normatividade do machismo, falam sobre a importância da autonomia e da crença na própria intuição. Seus livros são libelos que constroem pensamentos filosóficos alinhados aos de Simone de Beauvouir. Alias, ela mesma tem como marido um Sartre particularmente porto-alegrense. Mas isso é outra história. Aliás, conheço a autora tão somente por suas letras. Apresentado a ela em uma festividade na capital gaúcha mostrou-se reservada. Talvez seja o desejo de qualquer (bom) artista não querer desvelar sua verdadeira personalidade diante de seus seguidores. Uma tendência anterior a essa em que vivemos, onde a "sociedade da transparência" macula qualquer intenção de privacidade.


Não conhecia as verdades de Valesca no universo infanto-juvenil - mercado em que me exilei e que, por isso mesmo, permite-me o direito tácito de, volta e meia, criticar. Talvez nem tenha sido os jovens o principal objetivo de Valesca de Assis ao escrever "Vão pensar que estamos fugindo". Mas ela acertou na quina. A começar pelo título, divertido, comprido e curioso. As ilustrações de Antônio Vasques dão o tom dramático e cômico ao episódio narrado pela autora. Fala com assertividade da vinda da família real para o Brasil. A obra apresenta os bastidores da família Bragança, regida por Dom João VI, um príncipe aparentemente desemblemado, casado com uma espanhola irritadiça e filho de uma monarca louca. Em fuga diante da iminente invasão de Napoleão às terras alfacinhas, Dona Maria grita enquanto balança em sua carruagem: "devagar, vão pensar que estamos fugindo". Sua preocupação era genuína, pois apesar de estarem em fuga, precisavam passar uma imagem diferente para o povo que ficava para trás. Mas como disfarçar a comitiva de milhares de cortesões divididos em diversas embarcações no porto de Lisboa?


A vinda da família real para o Brasil foi pitoresca e extraordinária sobre vários aspectos. Graças a isso, o Brasil desenvolveu-se, pois deixou de ser uma colônia e alcançou status de reino. A elite que aqui vivia, logo se acostumou com a presença da corte. E isso foi fundamental para a manutenção da Coroa em territórios tupiniquins em um momento em que os demais países da América saudavam o sistema político republicano. Nosso Brasil, quando se viu libertado de sua metrópole - reinaugurado sob nova direção, - foi regido por dois monarcas: Pedro I, filho de Dom João VI, e Pedro II, filho do primeiro. As curiosidades que remontam a fuga da família real e sua chegada a Pindorama são hilariantes e inusitadamente destituídas de ficção. É portanto uma história difícil de contar, ainda mais por uma ficcionista como Valesca. Fora se tratar de um dos capítulos mais conhecidos da historiografia nacional; só há poucos anos ganhou ares menos míticos e mais humanizados. E Valesca tira proveito da crise do estruturalismo da História Moderna para narrar em seu pequeno livro fatos interessantes que aproximam a família real e seus mais de duzentos anos do púbico de calças curtas. Fala sobre a infestação de piolhos no navio - o que fez a rainha raspar os cabelos - até a condição precária em que a corte se encontrava quando ancoraram na colônia; a gulodice e a falta de higiene do rei, os ataques de fúria de Dona Maria, os vômitos, a indiscrição das fofocas na corte real, entre tantos eventos. Essas passagens verídicas tornam a narrativa de Valesca um documento oportuno para jovens que estudam a História do Brasil, sendo portanto, um bom instrumento paradidático a ser usado pelos professores.


O happy end proposto por Valesca na última página do livro é compreensível. É preciso dar uma certa romanceada quando se escreve para crianças e jovens. E de certo modo, sua narrativa, nesse particular, está em consonância com versões de diversos historiadores que atestam o prazer que Dom João VI e que seu filho Dom Pedro I sentiam por estar no Brasil. A obra delicadamente editada pela Editora Libretos é um colírio para os olhos. Literatos terão vontade de morder o livrinho, gostoso de levar para o parque ou ler durante o recreio. Pelo fato de o tamanho ser diminuto, alguns assuntos ficaram de fora, ou pelo menos não foram devidamente aprofundados - é o caso da ordenação real que levou centenas de famílias a sair de suas casas para acomodar a família real e sua corte. A figura do futuro monarca Dom Pedro I e de Dom Miguel - fatos da infância que pudessem antecipar os conflitos que passariam a existir posteriormente entre os dois príncipes na fase adulta. A arquitetura ainda presente em Salvador e Rio de Janeiro - pouco exploradas, suas construções históricas e memoriais pouco citadas. Os diálogos com a Inglaterra, principal sócia de Portugal e a forma como se beneficiaram com a abertura dos portos também é assunto escolar que foi pouco abordado durante a narrativa. Mas não sentimos tanta falta desses eventos, pois o foco da autora estava na estranha relação familiar, no fator histórico inusitado - o Brasil foi a única colônia a abrigar seus monarcas - e no elemento formador de uma identidade nacional - confusa, mas instigante.


O maior êxito de "Vão pensar que estamos fugindo" é ser muito bem escrito e de suscitar muita curiosidade sobre o tema. O elemento didático da obra é fundamental para a conquista dos jovens leitores, pois nesse caso, não apenas serve de base para as ilustrações e para os preenchimentos ficcionais propostos pela autora, como também auxilia na navegação entre os marcos históricos. Nesse ponto, a autora nos lembra Stephan Zweig em seu "Brasil, o país do futuro", onde narrou didaticamente a História do Brasil para estrangeiros e acabou por conquistar leitores dentro de nossa nação. Tão pouco letrado ainda é nosso amado povo. Tão carente de informações sobre si. Daí deriva todo o tipo de injustiça, desde o preconceito étnico - algo a nós imposto pela nefasta prática da escravidão - passando pela falta de competência técnica (algo denunciado por Zweing), até a total subjugação dos menos abastados pelas classes mais ricas. Os pobres, sufocados pela falta de ethos, de carne própria, de alimento histórico, contribuem inconscientemente para a manutenção das instituições opressoras. É preciso saber: como chegamos até aqui? Para lograr sucesso é preciso estudar política, economia, entender de revoluções e de idolatrias; conhecer os marcos históricos e entender o que é um mito; o mundo está cheio de páginas escritas sobre pessoas e fatos que construíram a moenda de nosso Tempo. Precisamos urgentemente conhecê-los. E melhor, discutir sobre.


João Pedro Roriz é escritor, autor de 35 livros juvenis paradidáticos, professor de História, especializado em docência do curso superior, ator e jornalista.

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