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MESQUINHEZ DE AFETO?



Por João Pedro Roriz*


Tenho acompanhado com tristeza a dificuldade que muita gente tem de encontrar afeto, seja nos relacionamentos amorosos, nos ambientes de trabalho, dentro das famílias ou nos círculos de amizade. Há uma excessiva cobrança por ideais que ultrapassam o limite do bom senso: todos querem amizades prontas, relacionamentos simples, onde sempre vigore o bom humor, a compreensão e o entendimento, mas não querem enfrentar o drama e os momentos turbulentos que costumam vir junto com as relações humanas. Os afetos atuais são menos duráveis que nossos celulares: não superam uma breve tempestade de verão. A despeito do desafio da construção do olhar sobre o outro real, as pessoas são capazes de criar monumentos às próprias fantasias. Se ocupam com elas de tal modo que se tornam intolerantes ao primeiro sinal de diversidade de pensamento. Não sabem mais lidar com o que não é espelho.


De fato, sou o primeiro a dizer que é necessário se afastar de relações tóxicas ou de pessoas que não somam. Ninguém precisa se forçar a gostar de ninguém. Independentemente disso, é impossível deixar de notar um grande individualismo até mesmo dentro dos grupos que compartilham dos mesmos interesses. Preocupo-me com as relações descartáveis e de aluguel. As pessoas não se aplicam mais à manutenção das relações e diante do primeiro desafio, rompem com seus contratos sociais.


As redes sociais até conseguem aproximar quem está longe, mas, contraditoriamente, afasta quem está perto. A internet legítima os desejos do ego e os espetaculariza. O sujeito passa a ser doutrinado pelas próprias ideias capturadas pelos logaritmos e pelas bolhas formadas por vídeos e postagens, que existem com o único propósito de legitimar o Narciso e afogá-lo na própria imagem. A partir daí, quem não é Eco, é sumariamente descartado sem direito a defesa. E esse fenômeno deixou de acontecer apenas nas redes sociais para se tornar comum também no mundo analógico.


Descartar o outro e alija-lo das relações, seja no ambiente de trabalho ou na igreja, seja na roda de samba ou no parquinho do bairro é algo muito mais danoso para o meio social do que se imagina. Com essa atitude, produzimos depressão e ansiedade, medo do abandono, interesses mesquinhos e desejos de vingança e de compensação. Abrir mão de toda potencialidade que o outro possui é uma forma de desperdício e fere também o meio ambiente. Quem descarta lixo na natureza, também defenestra pessoas e ignora talentos. As pessoas objetificadas e desperdiçadas pelo moinho de moer gente - formado pelo mercado impessoal, ou pelas relações utilitárias - são usadas e atiradas no oceano do esquecimento, onde jazem na esperança de serem reaproveitadas e recicladas.


Vejo que deixamos de aproveitar o melhor da vida, que está baseado na experiência com o outro. Escritores não lêem livros de seus colegas, psicanalistas de um mesmo grupo de mestrado não tomam café e não discutem ideias, alunos de uma mesma sala de aula não se visitam em casa, colegas de trabalho temem falar de suas ideias nas reuniões, amigos de longa data não viajam juntos, pares românticos não trocam confidências, famílias inteiras não buscam atividades em comum. Todos usam fones de ouvidos, cada qual com sua play list e ninguém sabe cantar a música preferida do outro. Amigos não se organizam mais para buscar o recém-chegado no aeroporto. Elogios entre iguais estão mais escassos do que festinhas no playground. As pessoas procuram ajuda quando estão em apuros, mas não dão ajuda aos apurados. Muitos querem ver como o trabalho do outro funciona para fazer igual e ganhar dinheiro - poucos querem contribuir para esse sucesso. A vida virou uma corrida, onde todos querem ser os primeiros, poucos estão interessados apenas na experiência e na participação. Nessa corrida, quem tem like, supostamente é amado. E quem é muito seguido, para ser realmente admirado, tem que seguir apenas alguns felizardos. O afeto se tornou uma moeda cara e rara, passível de ser negociado na bolsa de valores. E cansado, me pergunto, quem foi que começou com tudo isso?


*João Pedro Roriz é psicanalista, educador e escritor. Autor de 37 livros, professor de Psicanálise da ABPC, CETEP e Instituto Távola.


Como citar este artigo: RORIZ, João Pedro. Mesquinhez de afeto? Capela de Santana: Revista Vida e Psicanálise, fevereiro de 2023.

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