Por João Pedro Roriz*
Imagine uma sociedade preocupada com a estética dos números e dos padrões; consumista e absurdamente concreta, onde artistas são figuras exóticas mantidas pelas famílias como animais de estimação. Essa é a crítica social proposta pelo escritor português Afonso Cruz no livro "Vamos comprar um poeta", lançado no Brasil pela editora gaúcha Dublinense.
A obra narra o dia a dia de uma família tocada pela subjetividade e pela excentricidade das metáforas propostas por seu animalzinho doméstico, um poeta.
"Vamos comprar um poeta" denota a importância da arte e da subjetividade em um mundo regido por regras econômicas e sociais e atravessado por uma cultura contabilista e consumista Foi Lacan que, em 1968 em seu seminário 23 (O Sinthoma), refletiu que a sociedade mudara por conta do consumo: as pessoas naturalizam os sintomas e tamponam suas faltas com aquisição de supérfluos.
É nesse universo que Cruz apresenta a visão do terror: pessoas que possuem sensibilidade e que falam em uma língua-outra são apenas tolerados nesta cultura quase distópica. Subsistem como seres de menor qualidade, precisam ser alimentadas e devem em momentos de esplendor de seus dotes, entreter seus donos.
A crítica é cirúrgica em um mundo onde os artistas estão relegados à marginalidade econômica e social. São, para os donos do mundo, eternas crianças obrigadas a manter um picadeiro permanente para o gracejo daqueles que os alimentam; pessoas sem raízes, ou mesmo sacerdotes inúteis que constrangem familiares que lutam "de verdade" pela sobrevivência.
A obra faz lembrar A Metamorfose de Kafka e o mito da caverna de Platão. Sua criticidade aponta as carência de subjetividade na educação e no dia a dia das famílas, assim como é observável a falta de elementos lúdicos nas brincadeiras e nas relações sociais.
As palavras, diria Lacan, já são condutores falhos do pensamento, pois limitam a alma e a individualidade. Eu completaria; quiçá se não há interesse por elas. O belo poeta de "Vamos comprar um poeta" rompe a dinâmica objetiva da língua para ajudar - qual um missionário - sua nova família a pensar o inefável através de novas expressões e de novas construções imagéticas, até transcender e receber como punição o degredo - sina daqueles que ousam (des)construir.
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João Pedro Roriz, 1982, é psicanalista, escritor e professor. Formado em Comunicação Social, História, Filosofia e Psicanálise. Pós graduado em Sexologia, Docência e Psicopedagogia. Mestre em Psicologia.
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