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Foto do escritorJoão Pedro Roriz

Nos caminhos de Tiradentes

Atualizado: 20 de nov. de 2019


Joaquim José da Silva Xavier, mais conhecido como "Tiradentes" foi um herói forjado pelos republicanos

Artigo publicado na revista mensal "Leituras da História", edição de Março/2018 - Editora Escala. Matéria de capa. Para baixar a matéria completa original, clique aqui

Duzentos e vinte e seis anos depois, às raias de completar 130 anos como nação republicana, o Brasil parece viver os mesmos problemas econômicos, fiscais e sociais experimentados em seus tempos de Colônia. A morte de Tiradentes parece ter sido em vão. O laço que matou o alferes ainda aperta com força o pescoço das classes economicamente ativas. Os impostos pagos pelos brasileiros estão entre os mais caros do mundo. Mas, paradoxalmente, esse esforço coletivo não parece saciar a demanda da máquina pública e da classe política por dinheiro.

Michel Temer, acusado inúmeras vezes de corrupção e protegido por seu grupo político, evoca a possibilidade de aumentar o teto de gastos e, com isso, desobedecer a chamada “regra de ouro” em 2019. Tal movimento poderia servir de base para uma denúncia de irresponsabilidade fiscal, alegação usada na ocasião do impeachment de sua antecessora, Dilma Roussef. Tal situação não é estranha à História do Brasil, construída pela forja dos desmandos das elites, pela manipulação política, pela disputa pelo poder, por revoltas, pelos golpes políticos-militares, pelo arroxo fiscal e pelo malho da luta entre classes. Nessa terra que Gilberto Freire alcunhou como “antagônica”, a Casa Grande e a Senzala convivem tête-à-tête e atendem aos desígnios de senhores de além-mar.

Exploração de ouro em Vila Rica

OCUPAÇÃO PREDATÓRIA

Poucos anos após a “descoberta” de Cabral, a coroa já impunha seus critérios fiscais. Havia monopólio de comércio de pau-brasil, de especiarias e de drogas. Os tributos mais comuns eram: 10% de valores de importação e exportação, dízimo sobre os pescados e colheitas, monopólio das moendas e engenhos, pedágio de embarcações e o “quinto” sobre a extração de metais preciosos.

O primeiro a pagar um tributo a Portugal foi Fenando de Noronha, que recebeu concessão para exploração do madeiramento brasileiro. Seu nome até hoje está relacionado a impostos, haja vista o tributo absurdo que um visitante comum paga ao visitar a ilha homônima no nordeste brasileiro.

Portugal percebeu desde cedo que seria quase impossível fazer valer sua Lei fiscal em terras tão longínquas. Por isso, já em 1549, desembarca no nordeste brasileiro a comitiva de Tomé de Souza, o primeiro Governador do Brasil, com a nobre missão de centralizar as cobranças, otimizar as arrecadações lusitanas e “evitar fraudes”, algo que se mostrou ineficaz em terras canarinhas. Com a chegada do Governador, começa a belíssima cultura de opressão do povo brasileiro através das figuras políticas.

A situação dos colonos brasileiros piorou em 1640. Com o fim da União Ibérica, Portugal garantira sua autonomia em relação ao Reino da Espanha, mas adquirira enorme dívida com o Império Britânico. A opressão fiscal se intensificou no Brasil. A Metrópole modificava a seu bel prazer as cobranças de impostos de acordo com suas necessidades de arrecadação. Em 1702, no auge do Ciclo do Ouro, Portugal cria a Intendência de Minas, órgão responsável pelo policiamento, fiscalização, direção das explorações e tribunal especial que visava garantir a cobrança dos impostos sobre a extração de metais preciosos. Lisboa fecha as fundições particulares de São Paulo e passa a regulamentar novas regras para fundições de ouro nos portos de Parati e Santos. Agora, além de extrair o ouro, os contratadores de Minas precisam trafegar com as pepitas por perigosos caminhos até o litoral a fim de pagar os tributos a Portugal.

Grandes caravanas atravessavam o “Caminho do Ouro” que, até hoje, liga esses portos até Minas Gerais. Essas caravanas eram ameaçadas por assaltantes e sofriam fiscalização ao longo de todo o trajeto. Os escravos que transportavam os metais preciosos usavam baias para lavar os animais em segredo e deles tirar o pó fino de ouro que encrustavam em seus pelos. Daí vem a expressão: “lavar a égua”, ou “lavar a baia”. Essas informações ilustram como o tráfico de ouro era fundamental para o funcionamento nessa região da Colônia e de todos que nela viviam, desde o mais rico senhor de terra até o mais miserável dos escravos.

Ainda hoje, o cidadão precisa trafegar por longas instâncias burocráticas para conseguir pagar o imposto governamental. Quem compra e vende imóveis ou envia produtos pelos Correios sabe o quanto é difícil e assustador estar em dia com o fisco. Enquanto isso, donos de cartório e contadores responsáveis pelo tráfego das informações auríferas “lavam a baia”.

"O julgamento de Filipe dos Santos", por Antônio Parreiras

MAIS IMPOSTOS

Em 1720 ocorre a primeira revolta dos colonos mineiros contra a Metrópole. Lisboa inventara uma nova taxa que agora fazia os contratadores de ouro pagar um imposto cobrado “por cabeça” de escravos que trabalhavam nos veios. Assim, as quotas de arrecadação obrigavam os contratadores de ouro a pagar cobranças fixas independentemente do valor auferido pelos rios já tão desgastados. A cidade de Vila Rica (atual Ouro Preto) se incendiou em uma revolta que durou quase um mês. O governador da região, Conde de Assumar, foi obrigado a negociar com os revoltosos. Quando os amotinados abaixaram a guarda, as tropas reais invadiram a Vila e controlaram a rebelião. Um fazendeiro chamado Felipe dos Santos, considerado líder da revolta, foi condenado à morte por enforcamento.

Em 11 de julho de 1788, o novo Governador de Minas, Luiz Antônio Furtado de Mendonça, mais conhecido como Visconde de Barbacena, recebe do ministro de negócios ultramarinos as instruções de realizar uma reforma tributária na capitania mineira. O visconde imediatamente substitui contratos vigentes por administração direta com a coroa e instaura processos legais contra os devedores da Fazenda. Seu governo é marcado pelo medo e pela apreensão, em especial daqueles que tinham dívidas com a coroa. Neste grupo estavam padres, militares de alta patente e outros membros da elite que traficava ouro sem pagar os devidos tributos.

Diante da possibilidade de ser decretado um “derrama” – nome popular atribuído ao decreto de apreensões em larga escala – alguns confabuladores reuniram-se na casa do tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrade para discutir a execução dos atos que culminariam em uma revolução republicana no Brasil. Entre eles estava um suboficial do exercito chamado Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. O resto da história todos já sabem: o traidor Joaquim Silverio dos Reis delatou todo o estratagema e teve suas dívidas perdoadas. Tiradentes fugiu para o Rio de Janeiro, mas foi encontrado, preso e enforcado. Seu corpo foi esquartejado.

"Tiradentes esquartejado", por Pedro Américo

ARQUÉTIPO DE HERÓI

A história de Tiradentes, assim como a de Felipe dos Santos foi totalmente esquecida por várias décadas. Em 1889 aconteceu um golpe de estado no Brasil. O país deixava de ser uma monarquia e passava a ser uma República. Naquela ocasião, um pintor positivista chamado Décio Vilares foi convidado pelos líderes golpistas para fazer um quadro sobre Tiradentes e seu terrível martírio, pintado como herói republicano, com longas barbas, roupas rasgadas e olhar perspectivo. Outros pintores da época seguiram o exemplo. A imagem de Tiradentes agora lembra bastante o rosto de Cristo. Seus companheiros de conspiração são pintados na figura de doze apóstolos. A caminhada do Tribunal até a Praça onde foi executado relembra uma via cruxis; seu traidor, Joaquim Silverio, ganha o papel de Judas Iscariotes. Com isso, o mito é formado. Tiradentes se torna mártir da República, figura impressionista da História. A primeira decisão do novo Governo formado pelo Marechal Deodoro da Fonseca é instituir o dia 21 de abril, data da morte de Tiradentes, um feriado nacional – o único em que se homenageia a morte de uma pessoa.

Por que escolheram Tiradentes e não Felipe dos Santos para o posto de mártir? Simples. Tiradentes era um militar – o que era conveniente, já que os proclamadores da República eram em sua maioria membros do exército. Já Felipe dos Santos era apenas um pequeno fazendeiro irritado com os impostos que pagava. Se tal alegação fosse importante, todo Brasileiro seria considerada um herói nacional.

O discurso sobre o passado de Tiradentes, seu esquecimento e posterior acessão como herói republicano, permite entender o contexto atual. O Brasil tem uma democracia extremamente nova. Como República, possui apenas 129 anos, um país construído pela forja dos desmandos das elites, pela manipulação histórica, pela disputa pelo poder, pelos golpes políticos-militares, pelas lutas entre classes e principalmente, pelo arroxo fiscal e pela péssima administração pública do dinheiro arrecadado.

Apesar de Tiradentes ser um feriado, ignora-se a luta que o levou à forca. As taxas de impostos desta república continuam impraticáveis e o Brasil continua agindo como colônia, ou seja, enviando suas riquezas para outras terras em um sistema de exploração. Entre os 30 países com maior cobrança de tributos do mundo, o Brasil é o que menos reinvestiu esses recursos no próprio País. Precisamos de novas inspirações, de novos heróis não fabricados que lutem verdadeiramente pelo ideal de liberdade prometida na canção: “Liberdade! Liberdade! Abre as asas sobre nós. Das lutas na tempestade. Dá que ouçamos tua voz”.

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João Pedro Roriz é escritor, jornalista, historiador e arte-educador.

Todos os direitos resguardados ao autor.

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