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Não tolero mais natal


Não tolero mais natal. Reunir-me com um monte de gente apenas por causa da bendita prática tradicional? Ignoramo-nos o ano todo e agora, plim, estamos compelidos a uma visão plural e harmônica de nossa existência? Não me obrigo mais a isso: ver pessoas que eu pouco conheço e que nem gosto muito só por que um profeta nasceu há dois mil anos em data desconhecida; um profeta que nunca escreveu o que disse e que teve todas as suas palavras deturpadas com o passar do tempo. "Ah, mas o natal é um feriado, um momento bom para você ficar com quem ama". Disse bem: com quem ama! É isso que farei, mas não só no natal, mas ao longo de todo o ano. E não precisa ser parente para fazer parte da minha familia. Logo, meu natal é todo dia. E se eu não puder ver meus amados no dia 25, vejo no dia 26 e está tudo certo. Afinal, o calendário é uma grande e bela invenção humana. A galera das antigas não concorda. Ficam com lágrimas nos olhos porque "as famílias estão se desfragmentando", porque "o relativismo está acabando com todos os bons costumes e instaurando a anarquia". Vamos parar com o drama! A instituição famíliar não vai acabar coisa nenhuma! O que acontece é que é preciso entender e aceitar (dói menos) que a definição de família mudou. As familias deixaram de ser alargadas e tradicionais - centradas na responsabilidade consanguínea nata - para assumirem um papel mais fraternal, com estrutura mais nuclear e fomentada tão somente pelas relações (parentais ou não). Dois amigos que moram juntos, hoje, é família, queira você ou não. Mas não adianta... Chega no bendito 24 de dezembro, há um certo deslumbre na passarada, uma certa opressão em relação as obrigações institucionais com a dita família tradicional: lá vem aquele tio que vc só viu trinta e seis vezes em sua vida (todas elas no natal) te dar conselhos íntimos, lá vem o filho da sobrinha da irmã do genro do primo de terceiro grau da sua avó que você nem sabe quem é te dizer que você tá gordo(a). Eu tento me convencer de que a vida é feita de desafios, afino o bigode e vou a luta. Um monte de comida. Pra que tanto? Eu não tenho religião, mas pelo que eu estudo, o cristianismo ocidental entrou em crise com seus fiéis justamente por causa dessa ostentação pecaminosa, quase pagã. Daí vem alguém que já bebeu todas me dizer para eu "relaxar" e me deixar levar. Mas eu não consigo, porque a Simone canta sem parar, aquelas merdas daquelas luzinhas da árvore (artificial) me deixam tonto, as comidas do frio europeu me dão calor e todos se reúnem em uma grande roda para rezar. Aqui entra o espírito verdadeiramente natalino que é a hipocrisia. Cada um pede por si, pela tal "família" que há pouco estava fragmentada e cheia de conflitos injustificáveis por causa de ideologias. Interessante observar que é no natal e no ano novo que as ditas famílias tentam passar uma visão (para quem???) de que entre seus membros há uma unidade na forma de agir e de pensar que justifique aquela reunião religiosa. A fofoca usual a favor e contra esse ou aquele indivíduo famigerado da alcatéia é deixada de lado momentaneamente para que sejam feitos pedidos mesquinhos a um deus todo poderoso . E tem gente que aproveita a reza braba para falar em voz alta e alfinetar o coleguinha que tá do lado: "Deus, traga-me paciência para lidar com os tesouros da iniquidade ocasionados pelo meu casamento falido", ou "faz o meu irmão encontrar uma garota que desperte seus interesses e o faça abjurar de seus pecados", ou "de-mê comiseração para entender os desmandos juvenis dos terríveis filhos que o Senhor me confiou". As rezas são direcionadas pelos patriarcas e matriarcas para que alguns pobres perdidos membros da família encontrem seus caminhos, isto é, se casem, tenham um bebê, e entrem para o fluxograma usualmente aceito. Aí, depois disso tudo, como se não bastasse, cumprido o ritual dogmático, todos aliviados por ter feito suas obrigações metafísicas, chega o momento da barbárie... O momento do espólio: amigo oculto, com direito a "roubo" do presente. Ninguém compra dentro do valor combinado e o que deveria ser uma brincadeira se transforma numa guerra. Era para ser engraçado - creio eu - mas só retroalimenta a cultura industrial que marca as caracteristicas (des)humanas ocidentais. Os horários, os anseios, o prazer e as relações sempre giram de algum modo em torno do capital, do lucro e do armazenamento de bens. Quem vai para a boca do sapo? Normalmente são aqueles indivíduos que tiveram dificuldades em participar desse cenário mercantilista e que perderam emprego, voltaram a morar com os pais, ou não conseguiram sair do aluguel. A troca de presentes é algo tão superficial que beira a estupidez: troca de mercadorias (quando muito!) como prova de amor. Claro que presentear alguém pode ser algo positivo: você dá ao outro algo que você sabe que será importante para ele e isso diz que você se importa. Sim, pode ser algo positivo, mas de modo geral, deixou de ser um meio para ser um fim, mais uma finalidade social e de manutencão do afeto por meios mercadológicos, transformada em uma relação de poder: aquela que pôde dar mais presentes, aquele que é o mais querido, aquele que cumpriu com a promessa, aquela que buscou reatar a amizade, aquele que manteve a família unida, aquela que tem a casa maior e mais bonita, aquele que fez a melhor rabanada... e tudo isso na frente de todos, com testemunhos que provocarão os assuntos das palestras matinais do dia seguinte. Você pode achar que o meu libelo é triste e desprovido de sensibilidade. Deve achar que não tenho família e que provavelmente não tenho boas lembranças dos natais. Pois lhe digo que é o contrário. Os natais na minha casa sempre foram muito divertidos, mas eu sempre refleti sobre esses excessos e contradições e há anos me libertei das obrigações concernentes à época. Outros dirão: "a gente faz natal por causa das crianças, pois é sempre um momento mágico para elas". Lembre-se de que as crianças serão gratas de ter o que têm se houver bons exemplos. E esse exemplo vem dos adultos. Antes de pensar nas crianças, pense na criança que está dentro de você e que ainda não amadureceu. Faça um mea culpa antes de educar e de prover. Diante da obrigação de educar(se), é sempre bom avaliar o que fazemos de modo tão automático, pois sem reflexão, até as boas condutas tendem a se tornam mecânicas, cansativas, sem sentido e diria até permissivas e perigosas.


João Pedro Roriz é escritor, jornalista e professor.

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