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A cidade pelos trilhos do metrô

Atualizado: 23 de nov. de 2019


O metrô é o coletivo mais individualista que eu já vi. Milhares de pessoas introspectivas que sequer trocam olhares para não invadir o espaço alheio. É por isso que tantas pessoas usam óculos escuros no metrô: para poder observar os outros sem levantar suspeitas. Eu mesmo já fui vitima dos olhares curiosos das pessoas, pois, quando estou entediado no metrô, começo a cantar ou repassar os meus textos dramáticos em voz alta como se estivesse num palco, etc. Sem dúvida, já me taxaram muitas vezes de louco dentro do metrô.

No metrô existe interiorização espiritual, ou seja, cada passageiro tenta se lembrar de seu passado, daquilo que comeu no dia anterior, da data do aniversário de casamento, das contas a pagar, etc. O silêncio só é quebrado pelas rodas cortando os trilhos nos túneis e pela conversa chata de algumas pessoas inconvenientes que confundem o metrô – um lugar sagrado de silêncio e respeito, com um botequim de beira de estrada, acabando com toda a doce monotonia da viagem.

É muito fácil distinguir os passageiros casuais dos chamados “ratos de metrô”, que usam o coletivo diariamente no trajeto trabalho-casa – acostumados à paradigmática reza solitária na igreja metroviária. Outro dia, uma senhora estava cantando dentro do vagão lotado e ninguém disfarçava a irritação por tamanho acinte. É proibido cantar dentro do metrô, pois tira a concentração! Dezembro passado, um senhor se levantou e desejou a todos do vagão, um feliz ano-novo. Ninguém respondeu ao velhinho. É proibido falar no metrô! Outro dia, dois adolescentes começaram a se beijar, quando um homem de terno e gravata (provavelmente um advogado e dos melhores) começou a fazer um discurso moralista. Disse que se fosse a filha dele exposta a essa vergonha, mandaria matar o garoto. Matá-lo pode, beijá-lo nunca!

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No metrô, as crianças não participam da mesma “integração não social” dos adultos e preferem brincar com as barras de ferro que parecem ter esse único fim para elas. O engraçado é que tem sempre uma mãe ou uma tia (normalmente criança apronta quando está com a tia) que fica desesperada com a brincadeira de sua criança. Normalmente o responsável pela criança recrimina a falta de pudor dos filhos (ou sobrinhos) berrando de longe e gesticulando, chamando mais atenção do que a própria criança em sua brincadeira inocente.

Outro dia, uma mãe não permitiu que sua garotinha bem comportada fizesse contorcionismo nas barras de ferro e ela ficou muito amargurada. Apesar de toda a educação social e normas de etiqueta impostos pelos pais, no metrô, as crianças não conseguem deixar de ser elas mesmas... Ora, exercício de equilíbrio é uma necessidade orgânica para toda criança. Esses exercícios constrangedores não devem ser coibidos pelas mãe (ou tias, de novo), pois trata-se de uma necessidade fundamental para o crescimento e o aprendizado humano. Fiquei com pena da menina. Não me surpreenderei caso se torne uma mulher “desequilibrada” no futuro.

Adoro ver as mães trazendo seus filhos da escola. Me dá inveja. Quando eu era pequeno, me deparava sempre com o rosto magro e impessoal da empregada na porta da prisão educacional chamada colégio. Já vi muitos irmãos disputando cadeiras no coletivo. No metrô, ser irmão, é quase ser um antropófago inconsciente. Outro dia eu ouvi um garoto esquálido reclamar com o amiguinho que a sua avó era muito preocupada com a sua saúde. “Graças a Deus”, pensei. Se não fossem elas, quem iria nos fazer pensar que somos demasiadamente importantes para o cenário socio-político-cultural do mundo?

É imprescindível observar o comportamento humano em uma viagem entediante de vinte e cinco minutos e trinta e três segundos da Afonso Pena para o Flamengo. No mundo lá fora, é quase impossível parar para observar o mundo. Porém, no metrô, o mundo parece parar para ser observado. É nessas horas que sofro com a catarse aristotélica que me transforma num jornalista cultural sem demagogias, sem monografias e sem prolixas teorias. Mil coisas acontecem num só segundo e tudo pode ser descrito e compartilhado, até os fenômenos mais comuns como dedo no nariz, gente falando sozinha, choros contidos e risos histéricos sem aparente explicação.

O metrô de São Paulo é muito mais rápido do que o do Rio, o que faz perder a essência principal daquilo que já chamo de Poética do Metrô, que é o tédio. Sem o tédio não dá para reparar em ninguém. O triste silêncio de uma viagem de metrô consome idéias e dá um bom suporte para prosopopeias.

Publicado em O GLOBO em 2005.

Publicado em "Crônicas Rabugentas" (Arte em Voga | 2014).

Todos os direitos reservados ao escritor João Pedro Roriz.

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