UMA REGIÃO DEVASTADA PELA MONOCULTURA, MARCADA PELA INVASÃO DE TERRAS, CONFLITOS E MASSACRES.
Pousei na Serra dos Carajás com meus amigos Fábio e Bruno para realização de uma palestra
Voei até a Serra dos Carajás, encravada em pleno Pará com o objetivo de realizar, junto com meus amigos Fábio e Bruno (foto), uma palestra teatralizada para professores na cidade de Xinguara.
Estava emocionado no avião por ver o mar verde-escuro formado pela Floresta Amazônica que se estende do centro do Mato Grosso até o extremo norte da América do Sul. Quem sobrevoou a região sabe o que senti: uma emoção de ver ao vivo a vastidão da maior floresta tropical do mundo. Quem for ao Amazonas, em um voo baixo, poderá sentir com ainda mais intensidade a força dessa natureza selvagem e rica.
Logo após pousar na Serra dos Carajás, é possível sentir a força da natureza verde, graças a uma reserva mantida em torno do aeroporto particular da Vale do Rio Doce. Mas assim que peguei a estrada em direção a Xinguara, pude notar os terríveis desafios da região explorada por monocultores e extrativistas.
Cadê a floresta amazônica? Durante as quatro horas de viagem, apenas pastos
A região está totalmente desconfigurada. Não se vê os apelos da cultura paraense tão comuns em Belém, cidade que, pelo visto, é a guardiã da tradição local. Em detrimento da música típica, o que se escuta nas estradas do interior é o sertanejo universitário. A gastronomia típica do norte não existe naquela região que sofre influência direta da culinária do centro do País. Geograficamente, há uma explicação: Carajás está localizado mais ao sul do Pará, a 867 km da capital Belém. Está próxima de outros estados como o Tocantins, que exerce grande influência cultural e comercial na região. As cidades próximas a Carajás (Parauapebas, Marabá, Eldorado, Canaã e Xinguara) são alimentada pelo dinheiro da exploração de minério feita pela multinacional Vale do Rio Doce. A prática extrativista abre verdadeiras feridas no centro da Amazônia.
Mas o que me assombrou pra valer foi a transformação ambiental e climática da região. O bioma florestal que, até a década de 90, ainda figurava em pequenos recantos da região, foi reduzido a micro-reservas na Serra dos Carajás e dentro de fazendas monocultoras. A região toda está seca como no centro do País. A Amazônia transformou-se em um cerrado. Os rios estão secos e muito abaixo do nível normal. A fauna local é escassa. Com o desmatamento, vem as doenças. Especialistas em biodiversidade, como o primatólogo Sérgio Lucena, acreditam que alguns vírus perigosos, como o da febre amarela que atualmente assola o centro-sul do País, estão estabelecidos em matas e regiões silvestres com baixa ocorrência. De repente, por conta do desmatamento, se propagam rapidamente, atingindo macacos e humanos. Os animais começam a morrer primeiro. "São sentinelas. Se o vírus começa a se propagar em determinada área, a morte dos macacos nos envia um alerta", explicou o cientista ao site do EBC.
Na volta, tirei essa foto da janela do avião e me assombrei com o tamanho da devastação
O consumo exacerbado de carne de gado na região me chamou a atenção. Com frutas saborosas e grandiosa variedade alimentos, a Região Norte do País se destaca no cenário gastronômico nacional. Teria a monocultura de pasto e a criação abundante de gado influência direta no interesse culinário das pessoas daquela região? De que modo essa influência se daria? São perguntas que ficaram sem respostas, dado o pouco tempo de permanência no local. Mas tive a impressão de que há uma massificação da mídia em torno da carne de gado e certa influência das monoculturas sobre a gastronomia e sobre os hábitos das pessoas. Um indicativo disso é o fenômeno do "coronelismo moderno". Grande parte dos prefeitos daquela região do Pará é formada por fazendeiros monocultores. São herdeiros de terra que usam enormes áreas para o plantio de pasto e criação de bois. Se de um lado, há aqueles que apoiam a monocultura, pois acham que são beneficiados pelos empregos, do outro lado, os ambientalistas protestam. O desmatamento aumentou 26% em relação a 2015 e mudou completamente o panorama da região. Diferentemente do que ocorre no Rio de Janeiro ou em São Paulo - onde a mata atlântica é criminosamente devastada em decorrência do crescimento das cidades, - no Pará, a floresta é destruída para benefício de uma minoria rica.
Invasores sem-terra levantam favelas de palhoça e pau a pique na beira das estradas
Durante o caminho, pude ver as choupanas feitas de palhoça e pau a pique ao longo das estradas. Eram milhares de sem-terra revindicando um pedaço de chão. A discussão no carro foi simbolo de algo que já é conversado em altas instâncias do poder público:
- Esses sem-terras não tem o que fazer. Entram em terras produtivas, matam o gado, destroem tudo e quando ganham um pedaço de terra, vendem para outras pessoas para depois voltar a atacar outras fazendas.
- Mas são todos que fazem isso?
- Não são todos. Mas a maioria. São uma quadrilha que se beneficiam dos projetos da reforma agrária.
- Mas... quando eles ganham a terra, não têm o direito de vendê-las?
- Às vezes vendem para o antigo dono, o fazendeiro.
- E esse fazendeiro... por que um único homem é dono de tanta terra?
- Herança...
- Herança de quem?
- De barões e desembargadores, de homens graúdos ainda do tempo do Império.
- E esses homens, ganharam as terras de quem?
- Do Governo, creio eu...
- E quem habitava essas terras naquela época?
- Os índios.
- Esses índios foram retirados daqui?
- Sim, a força!
- Não seriam esses sem-terra parentes distantes dos índios?
- Podem ser, assim como eu e você.
- Então, isso significa que eu e você também temos direito a terra?
- Sim, temos. Mas eu já tenho a minha casa. E você?
À direita: situação da BR 155. Á esquerda, uma ponte de madeira que atravessamos com o carro
Contaram-me que nas fazendas ainda há subemprego, exploração do trabalho infantil e trabalho escravo. E o progresso que deveria ter chegado com os empregos da Vale, com a criação de pequenas cidades oriundas dos assentamentos de terra e a imensa demanda por força de trabalho nas fazendas monocultoras, deu lugar a um atraso social, educacional e estrutural. É impressionante a situação da BR 155 que liga Redenção à Marabá. A estrada é totalmente esburacada, o que causa prejuízos à produção e torna a vida das pessoas mais cara e complicada. Nosso guia utilizava uma pick-up 4X4 e nos levou à Xinguara através de uma estrada de terra igualmente destruída, com pontes apodrecidas sobre os afluentes dos rios Xingu e Araguaia - nomes que conjugados batizaram a cidade onde palestraria.
Ao chegar à Xinguara, deparei-me com uma cidade progressista. Fiquei hospedado no Bravo's Hotel, que tem qualidade executiva e ótimo atendimento. Dormi bem. No dia seguinte, apresentei a palestra para professores animados e muito participativos. Cantei para eles canções típicas como "Sirimbó da Vovó" e "Carimbó no Mato". Conquistei a plateia. Falamos sobre pedagogia e realizei uma série de dinâmicas interativas com o público. Saí ovacionado. Meu músico Fábio Pereira e meu arte-educador Bruno Pontes também foram muito aplaudidos. Foi necessário dormir novamente na cidade para partir no dia seguinte. Busquei tomar os sucos de seriguela, cajá-manga, açaí, graviola e cupuaçu que fazem o norte tão famoso. Procurei, mas não encontrei bacuri, bacabá, burití, abiu e jambo. Muitos habitantes nem sabiam da existência dessas frutas. No almoço, muita carne e pouco peixe. Não havia caldos, caruru, maniçoba ou tapioca. Nada de tacacá ou tucupi. Experimentei uma picanha guaranítica deliciosa - uma comida típica dos pampas uruguaios, - mas não consegui saciar meu desejo pela culinária local. Lembrei-me de um japonês que, certa vez, topou comigo no Rio de Janeiro. Viera do outro lado do mundo para ouvir bossa-nova na Cidade Maravilhosa e encontrara apenas pagode e funk. Uma frustração!
No local onde os sem-terra foram assassinados, há um memorial abandonado pelo poder público
Ao voltar para o aeroporto, pedi ao nosso guia que nos levasse até o ponto da BR 150 onde ocorreu o conflito que ficou conhecido como "O massacre de Eldorado dos Carajás". A região possui um memorial a céu aberto que relembra a morte de 19 sem-terra no dia 17 de abril de 1996. O local está destruído e muito desgastado pelas intempéries e pelo esquecimento do povo. Mas aqui, em nosso blog, fazemos questão de lembrar. Na ocasião, o Secretário de Segurança do estado do Pará, Paulo Sette Câmara, a serviço do então Governador, o médico Almir Gabriel, mandou policiais usarem "a força necessária, inclusive tiros" para desobstruir a famigerada BR que fora ocupada por sem-terra. Médicos legistas informaram que as vítimas do ataque haviam morrido com tiros a queima-roupa e cortes feitos com facão. Semanas mais tarde, o Presidente Fernando Henrique, pressionado pela opinião pública, criou o Ministério da Reforma Agrária, hoje chamado Ministério do Desenvolvimento Agrário. Mais de 20 anos se passaram e pouco se fez sobre a chacina de Eldorado. Ninguém foi preso. O Monumento Eldorado Memória, projetado por Oscar Niemeyer na cidade de Marabá foi erguido ainda em 1996 e destruído meses depois. Segundo o MST, a destruição foi encomendada por fazendeiros locais.
Voltei para casa perturbado com tamanho contraste entre abandono e poder, com as histórias de mais de 30 massacres como o de Eldorado dos Carajás testemunhados nos últimos 100 anos na região. Fiquei despedaçado junto com a Amazônia que não existe mais. Fiquei irritado com o isolamento de uma cidade do porte de Xinguara, contrariado com os paradigmas sociais impostos aos pobres e preocupado com a saúde dos habitantes afetados com a chikunguya e com a febre amarela. Fiquei assustado com o estado das estradas e preocupado com a integridade física dos viajantes. Como, uma região tão rica, pode ter estradas assim? A motivação só pode ser política, refleti. As enormes fazendas possuem pista de pouso e heliporto. O rico não precisa de estradas. E, pelo que parece, as estradas não precisam ser boas. Talvez tenha que ser assim. Uma estrada pavimentada levaria a imprensa, levaria a opinião pública, levaria o verdadeiro progresso a uma região dominada pela ignorância do Capital, pela apropriação da terra e pelo benefício de poucos anônimos que, de fato, estão no comando do nosso País.
A chuva caía sobre as cruzes largadas sobre a pilha de pedras pintadas de vermelho. A poucos metros, um homem me observava fazer uma prece contida. Perguntou-me se eu era simpatizante do Movimento Sem-Terra. Respondi que minha pele era vermelha, mas não por causa de ideologias econômicas, políticas ou partidárias. Minha cor é vermelha, pois tenho ascendência indígena. Sou feito da cor do jambo, a cor do Brasil.
João Pedro Roriz é jornalista e escritor.
e-mail para essa coluna: joaopedrororiz@arteemvoga.com.br